domingo, 24 de fevereiro de 2008

Crónicas dos primeiros tempos - bater no fundo

Na primeira semana que passámos na Holanda houve dois momentos a que chamámos "bater no fundo", ou seja, quando vimos a coisa tão grave que pusemos em causa tudo e mais alguma coisa. O que valeu é que tivemos esses momentos em diferido, e não os dois ao mesmo tempo, pelo que deu para nos aguentarmos e não desistir.

Quando o T. bateu no fundo
Foi logo 2 dias depois de chegar.
Combinámos com a N. encontrarmo-nos na manhã de sábado - ainda não tínhamos estado com ela. Como é típico da N. resolveu combinar um café com a sua melhor amiga de cá nessa mesma manhã. Lá fomos. A amiga era inglesa, muito simpática à primeira vista, super despachada e cómica. Conversa puxa conversa e claro, o inevitável assunto (que nos persegue desde então) do "então porque é que vieram?" surgiu à baila. Lá explicámos um pouco o porquê da nossa decisão. Depois foi o descalabro. Ela resolveu não só dar a sua opinião sobre o país, mas também se pôs a desenrolar um sem número de dificuldades que iríamos enfrentar e de erros que já estávamos a cometer. E o pior de tudo é que a N. lhe fazia coro e dizia que sim.
Que nunca iríamos falar o idioma de modo perfeito, que sem falar holandês íamos ter graves problemas ("the language will definitly be an issue" - parece que a estou a ouvir), que as casas são caras, que os holandeses são frios e antipáticos e não ajudam ninguém, que foi uma estupidez termos trazido o carro, que os parquímetros são caros e que assaltam os carros estrangeiros. À medida que iam saindo palavras daquela boca eu e o T. íamo-nos sentindo cada vez mais pequenos, cada vez a diminuir mais de tamanho tipo Alice não no país das Maravilhas, mas no país dos Horrores. No fundo ela estava cá porque o namorado, agora marido, é holandês, e não compreendia como podíamos nós vir para cá por opção. Até aqui eu até compreendo, mas aquilo que eu não esqueço foi a atitude da N., a concordar com tudo o que ela dizia - quando muitas das decisões que tomámos foi baseados na opinião dela nas semanas anteriores.
Apesar de toda esta negatividade, eu pessoalmente não fiquei muito abalada pois estava confiante na nossa sorte, e tentei não dar importância à coisa. Depois do café a amiga foi embora e nós fomos almoçar. O T. nem conseguiu comer...
Quanto à amiga, o mais estranho é que nunca mais a vimos. Nunca mais houve ocasião de voltar a tomar café com ela, apesar de ela ter muito contacto com a N. e nós na altura também. Sei que casou e que agora vive em N.Y. Era bem feita que alguém lhe fizesse o mesmo que ela nos fez a nós!

Quando eu bati no fundo
O meu bater no fundo ocorreu uns dias depois.
Depois de tratarmos das primeiras burocracias - So-Fi nummer, registar no consulado português, registar na Câmara Municipal - chegou a altura de procurar casa. Sabíamos que muitas agências de emprego só aceitavam quem tivesse morada na Holanda. Fomos então em busca de agências para alugar casa, e chegámos à conclusão que só podíamos alugar casa se tivéssemos contrato de trabalho.
É uma das situações típicas da burocracia deste país, que é o preso por ter cão e preso por não ter. Não temos casa porque não temos trabalho e não temos trabalho porque não temos casa.
Lá com opiniões de inglesas snob, ou dificuldades em tratar do carro podia eu. Mas nesse dia senti que me tiravam o tapete de debaixo dos pés.
Estávamos ainda na pensão dos surinameses (que para nós ficou "O Suriname") a pagar dia a dia, pois sabíamos que não podíamos ficar muito mais tempo.
Há uns anos atrás houve uma inspecção geral em toda a Holanda para deportar imigrantes ilegais - muitos deles viviam em pensões como esta e os donos receberam pesadas multas. Por isso a pensão se chamava Short Stay Accomodations, não fosse alguém pensar em ficar por lá 6 meses ou coisa que o valha. Resultado, chegámos à pensão e tivemos de ir falar com os donos, explicar que de momento estávamos sem casa e que teríamos de ficar pelo menos mais uns dias. Foi o descalabro II. Basicamente desfizeram a réstia de esperança que eu ainda tinha. Disseram literalmente que o melhor era ir embora da Holanda, que não vínhamos em boa altura, que trabalho só mesmo nas limpezas e que só lá para Março ou Abril. Disseram que não podíamos ficar, por muito que nos quisessem ajudar.
Ficámos os dois de boca aberta a olhar para eles, mas dissemos que pelo menos mais uns dias tínhamos de ficar - é que nem tínhamos outra hipótese.
O dono resolveu então ir falar com um português que estava também hospedado - o Sr. Rui, electricista - a ver se nos podia ajudar. Ora o Sr. Rui devia estar a fumar a sua erva no quarto quando fomos lá bater. Apareceu com uma grande moca naquela cabeça, e praticamente sem dizer coisa com coisa.
Quando demos por ela estávamos os dois numa cozinha minúscula, com o Sr. Rui pedrado a olhar para o mapa de Rotterdam à procura da Beurs - que é o centro, ou seja, mais fácil de encontrar impossível -para nos explicar onde era o Café Lisboa. Era ele em silencio a olhar e com o dedo à procura e os minutos a passar - só visto. Eu, do nervoso, comecei com um ataque de riso valente, sem conseguir parar. Era insólito demais. Ele continuava à procura da Beurs, o T. de vez em quando ia dizendo "deixe estar, nós depois procuramos". Não foi uma grande ajuda, mas ficou a intenção.
Foi a minha vez de pôr tudo em causa. Ali estávamos no meio da Delfshaven, em pleno Suriname, sem casa, sem trabalho, com 1000 tralhas e um carro à porta. Teria valido a pena?

Nessa noite ligámos à N. e dissemos que não podíamos arranjar casa através de uma agência, e pedimos que ela nos desse um contacto de alguém para alugarmos uma casa. Umas horas mais tarde ela ligou-nos com o telefone de um senhor chamado Tony, que alugava clandestinamente meia Rotterdam.
E depois de bater no fundo, o caminho só pode ser para cima.

2 comentários:

Anónimo disse...

E realmente foi sempre a subir, desde "a margem sul", passando pelo centro de Roterdão até essa casa linda de Amesterdão. Mas o relato dessas situações (que eu já conhecia) mesmo dando para rir um pouco hoje, ainda me dá um aperto no coração e me mete uma lágrima no canto do olho sempre que o ouço ou leio. Por pensar que tiveram de passar por isso... Mas o melhor de tudo é que correu tudo bem.

Tella disse...

Tb eu fiquei com um nó na garganta e no fim, veio-me uma palavra à cabeça: "corajosos"