terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

365 de saudades (agora mais)

A minha mãe gostava de música e gostava de patinar. Se o piso estivesse escorregadio era pessoa para patinar de meias. Saltava à corda e ao elástico e jogava à macaca. Fazia carreirinhas nas ondas do Algarve. Ficava no carro até acabar a música que ela gostava e estava a dar na rádio. Acumulava coisas que não serviam para nada. Vestia-se de modo clássico e discreto e não gostava nada de ser o centro das atenções. Não gostava nada do seu próprio cabelo, encaracolado até mais não, e passou a vida toda a tentar domina-lo. Gostava de chocolate com amêndoas, de café com leite e o pão era sempre torrado (mesmo se fosse fresco). Fazia a melhor tarte de maçã. Teve muitas oportunidades na vida, estudou mais do que as meninas da sua geração, viajou sozinha numa altura em que ninguém o fazia. Aos 19 anos teve de deixar de estudar e ficou a sustentar a casa, e talvez por isso nos tenha educado sempre para sermos independentes e capazes, no caso dela nos faltar. Mudou de cidade e largou tudo por amor. Trabalhou em televisão. Trabalhou com pilotos de corridas, nos bastidores do autódromo e com surfistas de alta competição. Tricotava camisolas com bonecos, depois passou a tricotar coletes porque se fartou de fazer mangas. Costurava as nossas roupas, saias e vestidos iguais para as 3. Tinha o maior orgulho no nosso cabelo, que nos obrigava a cortar bem curto todos os verões (para crescer forte) e depois de adultas refilava sempre que cortávamos um bocado. O seu armário tinha um cheiro específico e único. Usou o mesmo perfume desde a infância até ao fim. Não era perfume, era água de colónia Johnson's. Era tão bonita, tão bonita, que nenhuma de nós lhe chega aos calcanhares. Uma vez disseram-lhe isso quando a minha irmã era bebé - uma mãe bonita nunca tem filhas bonitas - e ela ficou para lá de ofendida e nunca perdoou. Era uma pessoa de poucas mas boas amizades, não fazia novos amigos com facilidade mas manteve os mesmos amigos da infância até ao fim. Adorava bebés recém nascidos. Ficava intimidada numa sala cheia de gente estranha, não era pessoa de meter conversa com qualquer um. Se gostava de uma peça de roupa ou sapatos, comprava repetido de cores diferentes. Tinha inúmeras carteiras e sapatos azuis escuros. Tinha o dom de descodificar as pessoas logo que as conhece (e só se enganou uma ou duas vezes). Gostava de ler. Gostava da praia ao fim da tarde. Adorava o mar. Gostava de puzzles. Era alérgica a coentros e à humidade. Filha de pais divorciados (nos anos 60!) pôs sempre a família em primeiro lugar.
Queixava-se de muita coisa, mas nos momentos mais difíceis tinha uma capacidade de resistência incrível, sem queixumes. Deixou-me fazê-la rir até às lágrimas na sala de quimioterapia. Foi uma leoa, uma lutadora exemplar, e deu-nos a todos a maior lição de vida.
Gostava de nós acima de tudo, e chegou a dizer-me que valia a pena viver só para estar connosco (mesmo quando viver implicava estar amarrada à cama e sujeita a tratamentos muito dolorosos).
Escolheu a dedo o momento de se ir embora, aproveitando os únicos 2 minutos que a deixámos sozinha para sair de cena discretamente, como aliás viveu toda a sua vida.
E durante este ano temos tentado adaptar-nos à sua ausência, e tentado viver à sua imagem e habituar a esta sua presença que já não é física mas que é tão ela em tanta coisa.
365 dias de saudades, agora mais.
E continua a contar.

9 comentários:

mãe de 3 disse...

Está espetacular. E as saudades que nos deixou são mitigadas por este exemplo tão tão importante: é aproveitar cada momento da vida com o que de bom ele nos traz.

Tella disse...

Adorei conhecer um pouco mais da tua mãe. Obrigada.

Monja Beneditina disse...

Mesmo que não a tivesse conhecido, mesmo que não tivesse dela a imagem que aqui está já era suficiente para a admirar. Mas felizmente conheci e gostei muito dela. E posso afirmar que aquilo que foi a prioridade dela foi admiravelmente conseguido: três filhas extraordinárias que em todas as horas são o seu melhor testemunho. Mary o post está maravilhoso. À altura das duas: tu e a tua mão. Beijinhos

Cáti disse...

Amei o post!

Cáti disse...

Amei o post!

Cartuxa disse...

QUando acabei, pensei...só falta uma coisa!! Aquele gosto de comer um salgado a meio da manhã, uma empada ou um rissol, com o café... Muito mais salgados do que doces! O que sempre me fez confusão,mas hoje nem tanto. Obrigada, mana.

joaninha disse...

Linda homenagem <3

Raqlinha disse...

Amei o texto! Bjnhos Ficou a faltar a parte de ser super organizada e de saber cozinhar como ninguém com o micro ondas! Bjs

Mariah disse...

Um beijo Mary, gostei muito de ler...